por Socorro Leite, Diretora Executiva Nacional da Habitat para a Humanidade Brasil
Neste Dia Mundial do Habitat, é importante lembrar que enquanto tivermos desigualdades socioeconômicas tão grandes, não teremos um futuro melhor para todas as pessoas que vivem nas nossas cidades. Para além da redução das fraturas sociais que existem, é necessário reconhecer que, na construção histórica das cidades, grande parcela da população não teve as oportunidades e condições necessárias para viver de forma digna. Gerações e gerações estiveram à margem dos benefícios que a vida urbana pode proporcionar e sofrem com a falta de perspectiva e de respeito, em especial a população negra e pobre.
A luta pela permanência nos seus territórios de parcela significativa da população brasileira ocorre desde o início da formação do país. As diferentes formas de apropriação do solo urbano foram sendo reforçadas ao longo da história por investimentos públicos muitas vezes seletivos. Aos territórios ocupados e autoconstruídos restaram infraestrutura inadequada, equipamentos e serviços insuficientes e risco. Quem são as principais vítimas das chuvas? E da falta d’água? São as mesmas pessoas que podem perder tudo em um incêndio, por morarem em condições precárias, ou numa reintegração de posse, quando a justiça decide que seu direito a morar é menor que o direito de propriedade de alguém que nunca utilizou aquela terra.
O contexto atual do Brasil traz ainda mais dureza aos que reclamam seu direito à cidade, com a redução considerável de investimentos públicos voltados para moradia social, saneamento e mobilidade, restringindo ainda mais as possibilidades de uma vida melhor para todos e todas. Associado a essa questão, se vê um processo de desgaste e criminalização de movimentos e organizações sociais que defendem os direitos humanos, e um desmonte de espaços institucionais de participação popular, que possibilitariam uma pactuação mínima entre os diversos setores da sociedade sobre políticas públicas voltadas para as cidades.
Por outro lado, o Estado se mostra bastante presente nas periferias quando o tema é segurança pública. Presença essa que torna as pessoas que moram nas comunidades alvos e vítimas do próprio Estado. Vidas afetadas e interrompidas em nome da segurança de quem? Recursos públicos também são usados frequentemente para promover intervenções urbanas nas comunidades, o que, em tese, deveria trazer impacto positivo, por levar infraestrutura a quem não tem. Porém, muitas vezes se tornam ferramenta de violação do direito à moradia, quando se removem famílias sem o mínimo respeito por sua história e pelos laços sociais construídos com a comunidade. De um Estado que deveria ser promotor de direitos, vemos ampliar-se o Estado violador de direitos.
Para termos um futuro melhor nas nossas cidades, precisamos começar a construí-lo agora. Não podemos naturalizar ou continuar aceitando que algumas vidas valham mais que outras. Não seremos justos com as próximas gerações se continuarmos a reproduzir exclusão e a negar direitos. Portanto, não podemos abrir mão de mudanças nessa forma cruel como as pessoas que moram nas periferias são tratadas e dos investimentos públicos necessários em políticas sociais e urbanas para criar um padrão de vida adequado para todas as pessoas.
Iniciativas locais que emergem da própria sociedade civil têm construído outras possibilidades e narrativas para as cidades. Nelas cabem todos os sujeitos e sujeitas que atualmente não estão convidados a pensar e viver a cidade: os sujeitos da resistência e da reinvenção. Espaços onde essas pessoas são protagonistas e a indignação de quem não tolera injustiças sociais se transforma em apoio ao próximo. Onde a dificuldade do cotidiano constrói laços de solidariedade e afeto e as mulheres, muitas vezes vítimas das relações de opressão e hostilidade nas cidades, tomam a frente de processos coletivos que constroem novas práticas.
Temos enormes desafios se queremos transformar as nossas cidades num Habitat melhor para todas as pessoas. Nunca foi fácil e não será agora. Sair da zona de conforto para apoiar uma causa, uma comunidade ou um grupo que provoque por transformações estruturais, se torna ainda mais urgente. A mudança do padrão excludente de cidade que temos também passa pela mudança nas relações entre as pessoas. Por isso, estamos todos e todas convidados ainda mais a reconhecer nossos privilégios, nos importar com os problemas dos outros e agir.
Segunda, 7 de outubro – Dia Mundial do Habitat