Conheça a história de Ediclea Santos, a líder comunitária que fundou um dos maiores movimentos de mulheres da periferia de Recife
Ediclea Maria dos Santos da Silva, mais conhecida como Cléa, nasceu no Morro da Conceição, bairro periférico da cidade de Recife, Pernambuco. Conhecido por possuir um histórico de luta política e social, também foi lá que ela teve contato com o movimento feminista pela primeira vez. Uma grande amiga de sua mãe foi quem a convidou para participar de uma roda de conversa nos anos 80, desde então ela nunca mais foi a mesma.
Foi a partir do ativismo que conheceu o significado de gênero e de raça. Também foi através do contato com outras mulheres que ela passou a reconhecer os ciclos de violência em que estava inserida. “A gente acha que um grito, uma porta que bate, um braço quebrado não é violência”, exemplifica.
A tomada de consciência foi fundamental para ela. Ouvir histórias tão semelhantes a sua da boca de outras mulheres fez com que se reconhecesse como mulher negra e periférica. “Quando me reconheci como mulher negra que estava em um ciclo de violência, tudo mudou na minha vida”, conclui.
Graças à militância, Ediclea ganhou asas. Foi por conta do movimento que ela saiu pela primeira vez sem marido e sem filhos. A luta pela igualdade de gênero também permitiu com que ela conhecesse diversos países. Colômbia, México, Chile, França, Alemanha, Paris, Espanha e Suíça fazem parte de sua lista.
“Eu nunca imaginei sair de Recife. Como uma mulher preta, pobre e empregada doméstica poderia sair do país? Quando cheguei em outros países e ouvi histórias de companheiras de territórios tão distantes e com histórias tão semelhantes, foi transformador”, afirmou
O Nascimento de Passarinho
A cobrança por moradia segura no Morro da Conceição resultou no loteamento do que viria a se tornar Passarinho, construído numa área doada pelo governo estadual. Cléa também fez parte dessa luta por moradia segura. Na época, existia uma grande demanda dos moradores da comunidade para uma realocação. Muitas pessoas viviam em áreas de risco. No período de chuvas, era comum haver enchentes e deslizamentos de terra.
Após muita luta e negociações com o governo, algumas famílias foram transferidas para o local que deu origem à comunidade do Passarinho. No início, os moradores ocupavam os loteamentos com barracos improvisados de madeira e papelão. “As pessoas não tinham como pagar aluguel, elas vinham do jeito que dava pra vir”, explicou a líder comunitária.
Ediclea mudou-se para Passarinho em 1997. Na época, quase todas as moradoras da comunidade trabalhavam como empregadas domésticas em outros bairros da cidade. Sem acesso ao transporte público, um dos vizinhos fazia o transporte das trabalhadoras com uma Kombi. Todos os dias, na ida e na vinda do trabalho, elas conversavam sobre a falta de políticas públicas no bairro, sobre as dificuldades que enfrentavam em suas casas e sobre as condições de trabalho. E foi daí que surgiu um dos maiores movimentos de mulheres periféricas do Recife: “As Kombeiras”.
“Faltava muita energia, tinha muitas gambiarras nas casas, a gente não tinha escola, nem posto de saúde. Não tinha nada. A violência era muito presente, havia desova de corpos na mata fechada. A gente ia conversando sobre tudo isso e, em 1999, eu e mais nove mulheres da comunidade fundamos o grupo. O nome era em homenagem à Kombi”, explicou.
No início, não havia uma consciência feminista no grupo. Era um espaço de conversas e troca de experiências. Só Ediclea possuía experiência com outros grupos feministas mais estruturados como o Fórum de Mulheres.
Através de parcerias com outras organizações, Cléa foi, aos poucos, trazendo a consciência feminista para as Kombeiras. O SOS Mulheres, o Fórum de Mulheres e a Casa da Mulher Nordestina foram grandes aliados do movimento de mulheres em Passarinho.
“A gente foi caminhando aos poucos. Nas datas comemorativas eu chamava algum grupo ou organização de fora para falar sobre o dia 8 de março, sobre violência contra as mulheres… e assim a gente foi se empoderando”, explica
Em 2008 as mulheres sentiram a necessidade de ter um espaço físico para realizarem as atividades. Foi aí que surgiu o Espaço Mulher de Passarinho. O grupo começou a expandir suas ações e a realizar mais atividades com crianças e mulheres em parceria com outras organizações.
No mesmo ano, também iniciaram um novo projeto, um evento sobre Beleza Negra – uma das primeiras atividades para valorização das mulheres pretas da comunidade. O despertar para as condições e consequências de ser mulher negra surgiram nas discussões sobre feminismo.
“Eu não sei dizer quem seria Cléa hoje se eu não tivesse entrado no movimento. É muito difícil se deparar com mulheres que não sabem de seus direitos e saber que você já se viu naquele lugar, naquela posição…”, afirmou
O Espaço Mulher foi crescendo e aumentando o leque de temas para a discussão. A pauta de políticas públicas voltou com força no ano de 2015. Desse debate, surgiu uma outra iniciativa, o Ocupassarinho.
Através da articulação com diversos movimentos sociais, o Ocupassarinho conseguiu pressionar o poder público sobre a questão de moradia digna, acesso à saúde e educação na comunidade.
O alcance dessa articulação foi tão grande que conseguiram realizar uma audiência pública dentro do território que ocupam.
Hoje o movimento de mulheres de passarinho é o que dá suporte a todo tipo de problema que surge na comunidade. “As pessoas procuram a gente. Temos o respeito dos moradores e de outras organizações”, enfatiza Cléa.
Neste momento de pandemia, o Espaço Mulher é utilizado até mesmo para realizar consultas médicas. O único posto de saúde da região é muito pequeno e não comporta a população da comunidade. Diante do crescimento da demanda e com a falta de espaço físico, um médico da rede pública realiza atendimento toda quarta-feira na casa ocupada pelo movimento.
“A gente faz um trabalho de formiguinha, de resistência. Hoje a gente também atende mulheres trans, mulheres lésbicas e até homens gays. Eu me fortaleci com o movimento, com outras companheiras ao meu lado. Por isso, também quero fortalecer outras mulheres, outras pessoas, através da militância.”, conclui