Mulheres Negras e a Cidade

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Neste Dia da Mulher Negra, Latina e Caribenha, confira o texto da socióloga Ednéia Golçalves sobre a turbulenta relação entre o racismo que estrutura a cidade e a resistência da população negra, em especial das mulheres

25 de julho é o Dia da Mulher Negra, Latina e Caribenha. A data reforça a luta história das mulheres negras por sobrevivência em uma sociedade estruturalmente racista e machista.

No Brasil, a data homenageia a líder quilombola Tereza de Benguela, símbolo de luta e resistência do povo negro. Tereza foi líder quilombola que ajudou comunidades negras e indígenas na resistência à escravidão no século XVIII.

Após a morte do marido, José Piolho, ela assumiu o comando do Quilombo Quariterê e o liderou por décadas. Ficou conhecida por sua visão vanguardista e estratégica.

Resistir, construir e avançar são verbos que as mulheres negras carregam consigo historicamente. Da luta contra a escravidão, aos tempos atuais, elas fazem micro e macro política nas ruas e nas arenas públicas.

Porém ainda hoje no Brasil, as mulheres negras são quem protagonizam os piores indicadores sociais. É preciso lembrar que a primeira vítima da covid-19 no Brasil foi uma mulher negra, empregada doméstica de meia idade.

Em “Mulheres Negras e a Cidade”, a socióloga Ednéia Golçalves traz à tona a materialidade desses indicadores na realidade das mulheres negras.

Confira o texto na íntegra

Este texto foi originalmente publicado em Recortes de uma cidade por vir/ Instituto Pólis, edição e organização Cássia Caneco.

(…) O espaço por suas características e por seu funcionamento, pelo que ele oferece a alguns e recusa a outros, pela seleção de localização feita entre as atividades e entre os homens, é o resultado de uma práxis coletiva que reproduz as relações sociais, (…) o espaço evolui pelo movimento da sociedade atual. (SANTOS,1978,P.171).

Peço licença à Ana Laura, dona da trajetória que me inspira, a revisar as diferentes possibilidades e dimensões da luta das mulheres pretas pelo direito à cidade. A ‘escrevivência’ de Ana reforça minha crença na potência das pequenas e grandes rodas como espaço de aprendizado em direção a uma sociedade mais equitativa e antirracista.

Do Jardim Vera Cruz na periferia de São Paulo, meu território, à Barueri de Ana Laura, para nós, mulheres pretas, o chão que pisamos nunca é apenas asfalto: é sempre memória, sabedoria, terra e pertença, pois as experiências individuais e coletivas que nos move são derivadas do enfrentamento diário pela sobrevivência em um ambiente estruturalmente racista.

Por essa razão, refletir sobre as implicações do racismo no processo de apropriação e circulação da população negra nas cidades é também um exercício de identificação desse território como mais um espaço de luta contra o apagamento de nossa presença história econômica, social, cultural e religiosa que atinge as mulheres negras interseccionando violências, discriminações e opressões.

Trabalhar, estudar, maternar, amar, morar, alugar, permanecer viva… O direito à livre circulação ainda é uma abstração, tendo em vista que as experiências individuais e coletivas que incidem na construção de vínculos com esse território se baseiam, sobretudo, na hostilidade ao nosso corpo e à história que ele representa.

A visão da periferia como espaço de pausa e ausências contém em seu DNA a ideia de que a ‘vida lá fora’, guardada neste outro lugar imaginário onde reside o prazer, a festa, o dinheiro, a vida. Essa visão “casa grande e senzala”, que até hoje inspira políticas públicas e alimenta o imaginário racista e separatista, contribui fortemente para a permanência dos quarto de empregada, uniformes alvos e elevadores de serviço, que escandalosa ou disfarçadamente resistem na cidade fortalecendo e reinventando as armadilhas discriminatórias de sempre.

Questionar a ideia que se esconde atrás da sentença “morar longe” é essencial para a compreensão específica e turbulenta relação entre o racismo que estrutura a cidade e a resistência da população negra a realizar o ideal de subalternidade que a branquitude historicamente teima em nos impor.

A rede de acolhimento que tecemos em coletivos é o que nos fortalece para o embate da porta para fora. Essa rede se estrutura a partir de complexas tramas e religiosidade, cultura, resistência e resistência, e representa a possibilidade de construir novas formas de vivenciar o feminino em ambientes hostis ao nosso corpo, nosso filhos, nossa vida, nossa cultura… e nosso direito de intervir e inspirar políticas públicas fundadas nas demandas das diferentes presenças que compõem o mosaico das cidades. 

A efervescência política e cultural da periferia que repercute e se impõe como vanguarda no aprimoramento da democracia e das lutas por igualdade em nosso país é fruto da teia de complexidades, singularidades e resistências que constituem a identidade negra e sua capacidade de reexistir, construindo novas formas de vivenciar a negritude, o desassossego e a liberdade. Assim nos ensinou Abdias do Nascimento.

A cristalização dos nossos conceitos, definições ou princípios deve exprimir a vivência de cultura e de práxis de coletividade negra, deve incorporar nossa integridade de ser total em nosso tempo histórico, enriquecendo e aumentando nossa capacidade de luta. (NASCIMENTO,2019, P. 289).

Como uma organização de promoção dos direitos humanos, um dos objetivos da Habitat para a Humanidade Brasil é fortalecer a resiliência de famílias e comunidades para que elas estejam capacitadas para reivindicarem seus direitos e multiplicarem conhecimento.

Hoje, mais do que nunca, é fundamental empregar uma perspectiva de justiça racial que permeie todo nosso trabalho. Defendemos que a desigualdade econômica e no acesso ao direito à cidade é um reflexo das profundas desigualdades nas estruturas de poder que governam a sociedade.

Empregar uma perspectiva de justiça racial e de gênero nos oferece a oportunidade de desconstruir estruturas que contribuem para uma série de violações de direitos e nos permite obter uma compreensão mais profunda de como as estruturas opressivas se sobrepõem.

Temos uma aula aberta sobre raça, gênero e direito à cidade disponível na íntegra no nosso canal do youtube. Assista, compartilhe e marque a gente!