Conheça a história de Chirlene de Santos Brito, trabalhadora doméstica que luta pelo reconhecimento dos direitos de sua classe
Aos 8 anos de idade, Chirlene de Santos Brito, começou a trabalhar como babá sem ao menos ter consciência de que estava prestando serviços domésticos a uma família. “Uma comadre da minha mãe me chamou para ‘brincar’ com o filho dela, mas na verdade essa ‘brincadeira’ era eu tomar conta do menino”, relata.
Durante quatro anos, Chirlene prestou serviços a essa mesma família em troca de material escolar e roupas. Todos os dias ela chegava ao meio-dia e saía às oito horas da noite.
“Ninguém nunca deixou claro pra mim o que eu estava fazendo ali, com o passar do tempo eu fui entendendo sozinha que eu tinha a obrigação de ir até lá para cuidar do menino e, assim, conseguir algo em troca”. Dessa família ela nunca recebeu em dinheiro, eles davam a ela o que queriam em troca do trabalho.
Essa primeira experiência foi o início de um ciclo de violências e de violações de direitos às quais ela seria submetida ao longo de sua vida. Chirlene, trabalhadora doméstica natural de Campina Grande, Paraíba, já foi vítima de violência verbal, moral, psicológica, física e sexual no ambiente de trabalho.
“A mais dura foi a violência sexual. Eu não esperava que um dia isso fosse acontecer e eu me submeti a continuar trabalhando naquele lugar mesmo sendo alvo constante de piadas e deboche. Essa era minha única fonte de renda, eu não conseguia enxergar outras alternativas”, desabafa.
Apesar do incômodo, ela achava esse tipo de comportamento normal. “Eu não tinha conhecimento do que eu estava sofrendo era violência”, reitera.
Além das diversas violências, direitos como jornada de trabalho de oito horas por dia, férias remuneradas, décimo terceiro e seguro desemprego também não foram garantidos na maior parte dos empregos que Chirlene teve. Por anos, ela intercalou o trabalho de diarista com o posto de trabalhadora doméstica fixa e sua renda mensal quase sempre era inferior ao salário mínimo.
Tomada de consciência
Foi a partir do ativismo e da educação que tomou conhecimento dos direitos de sua classe. Em 2006, quando ela resolveu retomar os estudos e estava terminando o ensino médio, foi convidada pelo CENTRAC (Centro de Ação Cultural) a participar de um curso de formação sobre direitos trabalhistas.
Na ocasião, a formação também estava sendo promovida pela Associação de Trabalhadoras Domésticas de Campina Grande. “Foi aí que eu comecei a perceber que eu tinha direitos e que eles não estavam sendo garantidos”, explica.
“Depois daí não parei mais. Comecei a tomar gosto pelos meus direitos, pela luta de defesa da categoria de trabalhadoras domésticas e estou nessa luta até hoje, mas não foi fácil”
Chirlene mudou a postura em relação aos seus empregadores. “Comecei informando eles, devagarzinho, sobre o que eu tinha direito”. No entanto, a resposta sempre vinha em tom de questionamento, “queriam saber onde eu estava tendo acesso a essas informações”, afirma.
Então, começou a se informar e se empoderar cada vez mais para ter argumentos e reivindicar melhores condições de trabalho. Quando percebeu que não tinha acordo, resolveu se demitir. “Não foi fácil tomar essa decisão. Eu sou chefe de família, eu me via em um beco sem saída. Se eu ficasse sem trabalhar, como eu teria condições de manter meus filhos?”, explica.
“Muitos dizem que nós somos praticamente da família, mas quando é para reconhecer nossos direitos, eles descartam esse discurso”, explica
Apesar das dificuldades, Chirlene se sente muito feliz e honrada pela oportunidade de ter acesso não só aos direitos trabalhistas, mas também a discussões sobre raça e gênero que são promovidas pelos movimentos sociais dos quais faz parte.
“Para mim é muito gratificante saber de tudo isso, me sinto honrada. Sei que muitas lutaram por mim, para que hoje eu possa usufruir de todos os meus direitos e que futuramente muitas vão dizer que eu também lutei por elas. Fiz parte de muitas construções, participei de audiências públicas, de encontros nacionais e internacionais para entender a realidade de minhas companheiras, das trabalhadoras domésticas do país e de fora dele também”
Trabalhadoras domésticas e pandemia
Hoje Chirlene é secretária geral da Associação de Trabalhadoras Domésticas em Campina Grande e faz parte do Conselho Fiscal da Fenatrad (Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas). Segundo ela, esses espaços vêm recebendo cada vez mais denúncias de trabalhadoras que estão sendo obrigadas a dormir no trabalho neste período de pandemia. “Muitas estão sendo coagidas a trabalhar nesse formato, sob pena de demissão”, explica.
“Há muita pressão psicológica. A realidade é que essas trabalhadoras ficam na casa dos patrões praticamente presas, muitas vezes, com jornada excessiva de trabalho, não tem hora para começar nem para acabar. Quantas trabalhadoras estão nessa situação? A falta de fiscalização é o principal fator que colabora para a permanência dessa realidade.”, conclui.
Muitas trabalhadoras perderam seus empregos e outras enfrentam realidades constantes de violações. Ainda há poucos dados sobre essa realidade, segundo um levantamento realizado pelo Instituto Locomotiva, durante o isolamento social, 39% das patroas de diaristas e 13% das mensalistas abriram mão dos serviços domésticos sem pagamento.
“Nesse período não temos muito o que comemorar. A única coisa que temos para celebrar é a organização da nossa categoria enquanto Fenatrad, sindicatos e organizações que estão se mantendo articuladas para dar apoio a todas as trabalhadoras que perderam seus empregos, que tiveram que deixar seus filhos para cuidar dos filhos dos outros. Não podemos desistir e temos que ter em mente que o essencial é preservar nossa vida e nossos direitos”.