A revolução dos banheiros do Nordeste

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Uma solução inovadora para a problemática da água e do saneamento básico no nordeste brasileiro

Por Mohema Rolim*

Mais de 70% da população que vive no semiárido brasileiro não têm acesso à sistema de esgoto. Esse dado alarmante não é novo. Está na publicação “Esgoto Sanitário: Panorama para o Semiárido brasileiro”, lançado pelo Instituto Nacional do Semiárido (Insa) em 2016. Para agravar mais esse cenário, a pesquisa refere-se apenas às áreas urbanas e mostra ainda que, de todo o esgoto que é coletado, 21% não é tratado.

Como um país que se diz em desenvolvimento pode simplesmente virar as costas para uma situação altamente degradante da condição de vida humana? Ainda mais considerando a extensão e importância da região semiárida brasileira, que é a maior do mundo e tem uma área de 982.566 km². Área essa que corresponde a 18,2% do território nacional, 53% da região Nordeste e abrange 1.133 municípios. A população do semiárido é de cerca de 22 milhões de habitantes e dela faz parte a maior concentração de população rural do Brasil.

Uma família que não tem acesso a tratamento adequado de esgoto e está diretamente em contato com fezes, engrossa a fila das internações por doenças de transmissão feco-oral (diarreias, febres entéricas e hepatite A), que segundo dados do IBGE (2015), foram responsáveis por 87% das internações causadas pelo saneamento ambiental inadequado no período de 2000 a 2013.

É o caso da Dona Vera, moradora da área rural de Riacho das Almas, em Pernambuco, e mãe de três filhos. Dona Vera e sua família não têm acesso a qualquer tipo de tratamento de esgoto e fazem suas necessidades a céu aberto em uma parte do terreno separada para este fim. Como muitas famílias da zona rural do semiárido brasileiro, Dona Vera utiliza o chamado banheiro de aveloz – que é o nome da planta utilizada para criar uma cerca viva ao redor do local onde a família faz suas necessidades.

Todos os dias, Dona Vera varria as fezes secas (do dia anterior) e os papéis utilizados para a higiene pra fora do banheiro de aveloz e fazia uma pequena fogueira, na tentativa de manter o ambiente livre de moscas e doenças. Seus filhos têm diarreia com frequência e Dona Vera já foi internada várias vezes com infecção urinária. Dona Vera necessita de uma cirurgia para a retirada de miomas no útero, mas com receio de passar o pós-operatório na sua casa com condições precárias de saneamento, ela vinha adiando essa cirurgia há anos.

Mas, em outubro de 2019, essa história mudou. Dona Vera e outras 15 famílias foram beneficiadas por um projeto piloto revolucionário promovido pela organização Habitat para a Humanidade Brasil em conjunto com parceiros. Dona Vera foi uma das famílias que recebeu um banheiro seco, que funciona sem água e sem energia elétrica e que mantém as fezes longe das moscas e do contato com as pessoas.

O Projeto

Na perspectiva de contribuir com as diversas tecnologias sociais que foram sendo desenvolvidas ao longo dos anos para melhorar a convivência com o semiárido, a Habitat Brasil vem desenvolvendo diversos projetos na região semiárida nordestina desde 2005. E diante desse cenário, no final do ano passado, iniciamos o projeto piloto de um sistema sanitário inovador e autônomo: uma combinação de um banheiro seco e um sistema de tratamento pré-fabricado, desenvolvido e produzido pela empresa alemã 3P Technik, especialmente para regiões rurais de países em desenvolvimento, onde a água é escassa.

O banheiro seco destina-se a moradias com até 5 pessoas e funciona sem a necessidade de água, eletricidade, produtos químicos ou outros aditivos, explorando as condições climáticas em regiões áridas e semiáridas. As fezes são secas e higienicamente estabilizadas por um sistema de ventilação especial e com a ajuda da radiação solar.

Ao contrário dos sistemas sanitários convencionais, este banheiro reduz a massa de fezes humanas em aproximadamente 95% e estabiliza os resíduos restantes sem a necessidade de instalações adicionais e sem o “manuseio” higienicamente questionável. Nenhum conhecimento ou auxílio especial é necessário para a operação. O sistema não requer manutenção.

Após a instalação dos 16 banheiros, iniciamos um acompanhamento de 2 anos junto a essas famílias para garantir o uso adequado e avaliar de perto os reais impactos dessa tecnologia inovadora na vida das famílias e no meio ambiente. O objetivo é utilizar este piloto para aumentar a eficiência e eficácia da solução e levá-la a mais famílias que sofrem com a falta de acesso à água e saneamento.

Neste Dia Mundial do Banheiro, nós queremos falar de esgoto sanitário; de como a falta de destinação correta do esgoto contamina a água de beber, a água que está nos solos e nos rios; de como a crise do saneamento afeta diretamente a população mais pobre e mais vulnerável do Brasil. Queremos convidar a todos a olhar para o lugar onde vivem, a conhecer para onde vai o esgoto produzido em sua casa: se esse esgoto está contaminando as águas que caem através das chuvas nas tubulações de drenagem ou se está sendo jogado nos rios e mares. A contaminação das águas é silenciosa e atingirá a todos, mas primeiramente e principalmente aos mais vulneráveis.

Habitat para a Humanidade Brasil dedica-se à promoção do direito de morar, de habitar e de viver com condições dignas. Para enfrentar esse grande desafio, temos atuado de diversas formas, seja na promoção direta de soluções que melhoram a condição de moradia em comunidades rurais e urbanas, seja na provocação por avanços nas políticas públicas que possam ampliar o enfrentamento do déficit qualitativo e quantitativo de moradias no país. Na região do semiárido brasileiro, em especial, a escassez de água desafia ainda mais a busca de soluções adequadas ao contexto e que tragam um impacto real na vida das pessoas.

* Mohema Rolim é arquiteta e urbanista, com MBA em gestão de projetos e militante pelo direito à cidade. Desde 2015, Mohema é Gerente de Programas da ONG Habitat para a Humanidade Brasil.