“A consciência de possuir uma horta em meio ao concreto é a consciência de que nós podemos ser agentes da transformação”

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Horta comunitária da ocupação 9 de Julho é referência em sustentabilidade na cidade de São Paulo, confira a entrevista completa com Carmen Silva, coordenadora do MSTC e idealizadora do projeto

Da necessidade de um mundo mais saudável, as metrópoles estão se reinventando para serem mais sustentáveis. Diante disso, hortas urbanas comunitárias estão sendo criadas, modificando os espaços urbanos e crescendo. Dessa possibilidade de troca vem surgindo diferentes ideias. Existem hortas que alimentam seus moradores gratuitamente, hortas em aeroportos, em prédios e até mesmo em estações de trem.

Na cidade de São Paulo, a horta comunitária da Ocupação 9 de Julho, localizada na região central, têm sido um grande exemplo de sustentábilidade. Além de ser um ambiente no qual os moradores podem aprender, trocar experiências e socializar, a horta comunitária da ocupação também facilita o acesso à alimentos frescos e saudáveis.

Para entender um pouco mais sobre esse projeto, entrevistamos Carmen Silva, líder do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro). Baiana e mãe de 8 filhos, Carmen já retirou quase 3 mil pessoas de moradias precárias e dos baixos dos viadutos.

Como e quando surgiu a ideia de realizar uma horta comunitária dentro da Ocupação 9 de Julho? 

A ideia de realizar uma horta comunitária na ocupação 9 de julho surgiu há três anos. Ela surgiu porque eu comecei a perceber que as pessoas idosas da ocupação não carregavam esse DNA urbano que os jovens têm. Muitos vieram da roça, do interior ou de outros estados e sempre tiveram o hábito de mexer com a terra. Então eu convidei um idoso que morava aqui na ocupação para começar a mexer na terra e ver se ele se alegrava um pouco com essa atividade, eu percebia que ele era muito triste. 

E daí pra frente outras pessoas começaram a se engajar com a ideia da horta. O pessoal da cozinha ocupa 9 de julho e do MSTC também começaram a se envolver. 

Conforme fomos avançando no projeto, começamos a pensar a questão do ecossistema também, que não adianta plantar por plantar, que é necessário tratar a terra. E depois de todo esse processo de aprendizado a horta se tornou o que ela é hoje.

Já colhemos 42 quilos de beterraba, mais de 30 quilos de beringela. Semana passada retiramos cinco quilos de peixinho. 

Hoje a gente possui pé de maracujá, ora-pro-nóbis… A horta trouxe uma questão bem carismática pra nós, que é a questão da culinária ancestral. As folhas, que a gente tinha perdido o costume de inserir na nossa alimentação como a Taioba e hortelã grosso, que a maior parte das pessoas urbanas nem sabe o que é, são plantas ancestrais e extremamente nutritivas. 

Como funciona o intercâmbio entre a horta comunitária e a cozinha da ocupação? 

A cozinha da ocupação trabalha com o que plantamos aqui e o que não possuímos, compramos de produtores rurais. Nós criamos essa rede, toda a comida produzida aqui é feita com produtos orgânicos. Realizamos essa compra direta com o pequeno produtor. O arroz e o feijão que utilizamos, por exemplo, é comprado diretamente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

Esse intercâmbio entre cozinha, horta e pequenos produtores só nos trouxe excelência e qualidade. Trouxe muita qualidade na nossa alimentação e também trouxe muitas reflexões sobre a questão da segurança alimentar. Hoje, infelizmente, temos muitas pessoas passando fome. 

Por isso, a cada marmita vendida ao público geral nos finais de semana, duas marmitas são doadas para comunidades vulneráveis. A mesma comida que é servida e vendida aqui é doada para comunidades. 

Atendemos muitas comunidades na cidade de São Paulo, dentre elas: Morro do Piolho, favela do Vietnã, mulheres imigrantes da Associação Instituto Luz e Vida, Grajaú e Cidade Tiradentes. 

Há distribuição das colheitas da horta com os moradores da ocupação? 

Hoje 129 famílias moram hoje na ocupação. Cada família toca sua vida de forma individual. Cada um possui sua própria cozinha e produz sua própria comida. Quando realizamos colheta na horta, doamos parte do que recolhemos para todos os moradores. 

Como vocês pensam a questão da sustentabilidade dentro da ocupação? 

Aqui a gente pensa na questão das árvores, na questão do lixo… temos uma composteira, com os resíduos orgânicos que produzimos fazemos a compostagem, que é uma forma de devolver o que seria “lixo” como insumo para a própria terra. 

A consciência de possuir uma horta em meio ao concreto é a consciência de que nós podemos ser agentes da transformação.

A questão do que está acontecendo hoje em Petrópolis, as chuvas que aconteceram em Minas, na Bahia… isso também está dentro da nossa consciência de preservação do território. É uma questão que tem a ver com a falta de acesso ao saneamento básico e de se pensar a natureza como a mãe de tudo. Não se deve desprezar a natureza com construções, com desmatamento desenfreado, não se pode negar a natureza.  

A preservação dessa horta, dessas árvores, o acesso ao saneamento, o descarte apropriado dos resíduos sólidos, tudo isso faz parte de possuir essa consciência de respeito a natureza.